quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

PARÂMETROS DE CURA





“Se o bom médico sente júbilo profundo quando pode reanimar a mente de seu paciente resgatando-o do desalento, de modo que as aflições ou as ofensas não entorpeçam a cura, também é seu dever sentir sua ineludível responsabilidade exercitar ao máximo sua capacidade de influir sobre o paciente, seus familiares e seu ambiente, a fim de redimi-lo daquelas aflições. Toda sua dedicação e capacidade de amar ao próximo devem levá-lo a considerar que este é o objetivo primordial”.
Samuel Hahnemann


Precisamos ter claro que desejamos ver no processo de um tratamento um raciocínio análogo ao de desafio enxadrístico: sem uma visão preconcebida da realidade clínica do enfermo, planejar a estratégia com que abordaremos cada caso.
O que desejamos ver curado no paciente, quais os instrumentos que dispomos para fazê-lo, se existem ou não obstáculos a cura.
Precisamos estabelecer qual é o modelo do homem curado dentro das várias escolas antropológicas e adequá-los à homeopatia, particularmente em sua abordagem miasmática.

Kent afirmava:

“observar pacientes em processo curativo servindo-se da técnica  usando vários similares para enfim tentar encontrar e administrar o simillimum que na nossa visão atual, sem a checagem das intencionalidades de cada melhora poderia-nos indicar apenas a presença de um estado supressivo no qual, graças ao tratamento, o paciente aprofundou seu estado miasmático egotrófico ou alterlítico. A crítica recai, neste caso, no modo de investigar a melhora do paciente.”


Entre os recursos semiológicos existentes devemos perguntar para os pacientes o que significa estar triunfante? O “porquê” e o “para quê” dos movimentos que observamos, enfim, para onde, do interior de suas próprias perspectivas, estes pacientes caminham?
Sem fazer estas avaliações, os casos podem até apresentar resultados clínicos satisfatórios, mas não teremos cumprido o papel de facilitar a liberação dos pacientes, de suas alegorias e fantasmas obsedantes, impedindo que eles exerçam, de fato sua liberdade. Como relata um paciente: “Eu sou livre mas não me sinto livre! Existe algo que carrego comigo que não me deixa sentir livre”. Esta escravidão, este agrilhoamento que o miasma engendra é o gerador de hábitos que favorecem sua fixação patológica. A atitude permanecendo monolítica anula qualquer possibilidade de transformação. Trata-se da única forma de avaliar o movimento dos miasmas, além de ajudar-nos no entendimento detalhado da trama de cada paciente, permitindo que asseguremos uma cura mais abrangente, a cura antropológica.
Quanto aos instrumentos, é necessário obter o máximo de dados do paciente e confrontá-los com o material patogenético. Mas isso pode ainda estar longe do suficiente.
É necessário, assegurar que todos os sintomas, as modificações, o aparecimento de sintomas novos, a volta de sintomas antigos, a anotação detalhada das disposições e das indisposições, estejam registradas.
O caso de assegurar uma semiologia correta de forma que sempre possamos adquirir o conhecimento do paciente em todos os setores: clínico, afetivo, intelectual, espiritual, idiossincrático e existencial \ miasmático. A cada um desses itens teremos que direcionar nosso interrogatório.
No aspecto clínico devemos investigar sobre a evolução dos sintomas, se o paciente vem melhorando, encontra-se estável, ou observa um declínio da melhora inicialmente referida.
Parece claro que a clínica demanda que atinjamos a esfera teológica da busca individual. Mas como fazê-lo? Com que instrumentos semiológicos? Uma recomendação, no entanto, merece ser sublinhada: evitar a qualquer custo uma semiologia “extorciva” para obter estas respostas.

Em primeiro lugar considerar que a cura, em uma perspectiva ampliada, só pode estar correta, sob a dimensão homeopática, se levarmos em consideração o parágrafo 9 as ponderações de Hahnemann nos seus “Escritos Menores”: particularmente nos textos “Medicina da Experiência”, “Esculápio na Balança” e “O Amigo da Saúde”, assim como uma análise cuidadosa do material contido em suas cartas.
A partir destes momentos temos a chance de entender o que significa “cura” para dentro do Corpus hahnemaniano.

O Parágrafo 9 do “Organon da Arte de Curar” é uma síntese para guiar o homeopata na busca de seus objetivos antropológicos, especialmente se considerarmos nele a inspiração hahnemaniana da liberação. Mas a liberação dos “instrumentos vivos e sãos” está teleologicamente condicionada: “para que ele alcance os mais altos fins da existência”. Hahnemann então deixa muito clara a sua rejeição a uma solução autotélica(com finalidade em si mesma) de vida, sejam quais forem os referenciais antropológicos usados para justificá-la.

“O propósito da saúde de seu corpo é que a alma encontre seus instrumentos sãos e saudáveis para poder dirigi-los às ciências e para adquirir as virtudes morais e racionais para atingir esta meta.”

A palavra curar vem do latim curare e segundo os dicionários etimológicos passou a ter o atual significado de cura médica, posteriormente: “Do sentido de Cuidar (de uma doente) passou ao termo (sarar). Sarar do latim sanare, ficar são”.

Para a visão vitalista de medicina, “curar” pode significar, melhorar, cuidar,atenuar sofrimentos, sarar, restituir. Ainda no século passado, o pai da histologia Bichat, afirma que só poderíamos chamar de cura perfeita um indivíduo que tivesse morte natural ao térmico de sua existência e já advertia “que não era fácil de ver casos de morte natural”.
Revisando as definições de saúde encontramos Canguilhem quem interpretou a saúde como “silêncio  dos sintomas” enquanto Beguin preferiu identificá-la como um estado de “inocência orgânica”, mas estes parâmetros também tornaram-se insuficientes para permitir a detecção do que é que o indivíduo busca como sentido para sua liberdade. A alusão do parágrafo 9, “liberar os instrumentos”, representa uma etapa preliminar para usá-los apropriadamente, mas como normalizar a cura se o que buscamos é exatamente singularizar a patologia? Repetiríamos com Kant que “cada homem tem seu modo particular de estar são”.
A liberação mental deste estado mitologizante permite desenvolver ao sujeito sua forma original de pensar, o indivíduo não será mais um mero cúmplice de seus próprios vícios.
Hahnemann veio reformar o conceito da patologia, que estabelecia uma identidade necessária e exclusiva entre lesão e enfermidade. Para ele, cuja herança foi decodificada por Kent, a enfermidade não poderia se deixar reduzir ao contexto lesional, ou da entidade anatomoclínica, mas deveria ser ampliada para corresponder a totalidade dos sintomas (objetivos e subjetivos) que o enfermo apresentasse. Para ser um médico antropológico não é necessário abandonar a patologia e a fisiologia, mas trazê-las ao campo correto, ao terreno de uma terapia para o conjunto humano.
Isso trouxe uma dimensão definitivamente nova para a arte médica, que deixava finalmente de se ocupar exclusivamente das “paixões corporais” e da patologia lesional para dedicar-se a entender e debruçar-se, mesmo com as enormes dificuldades, sobre a complexidade do organismo, incluindo e valorizando as abundantes manifestações da subjetividade presentes nos sujeitos enfermos.
O desiderato de cura rápida suave e duradoura não é e nunca será um estado simples de ser alcançado, mas deve manter-se como um alvo contínuo. Portanto, do ponto de vista da técnica homeopática original é o que deve sempre ser perseguido em todas as circunstâncias.
O todo não é a soma das partes, mas as partes multicêntricas em correlação e intercâmbio permanente é que caracterizam a complexidade do todo vivo. Isto está em consonância com a verdadeira concepção vitalista de toda uma linhagem de médicos. A enfermidade caracteriza-se pelo desarranjo da “atmosfera individual” e sua posterior reconstrução através das “estruturas falsificadas”, se quisermos retomar a terminologia que Henry Allen utilizou.
Esta falsificação ajusta-se ao plano de enfermidade mais profunda que Hahnemann chamou de miasma.
A clínica denota que é somente após este plano de falsificação da autenticidade original ter entrado em cena que poderemos enxergar sua repercussão citológica- tecidual, então organizadas no paciente, repercussões que segundo as descobertas da patologia experimental apresentam-se de uma forma muito mais veloz do que o senso comum imagina.

Área Afetiva / Anímico

Melhora das funções dos instrumentos de relação. Investiga-se o ânimo, o estado de espírito, o humor. Deve-se estar atento que esta possibilidade de reagir psiquicamente não seja a expressão das já descritas “falsas estruturas” ou das melhoras enganosas sustentadas pela atuação miasmática.
Os sonhos são parâmetros importantes e são, como todos os itens desta divisão, permeados pela idiossincrasias individuais. No entanto, há que se vê-los com muita cautela e num contexto individualizado. Devemos retomar aqui a atitude investigativa e não interpretativa. É necessário contextualizá-los na vida do indivíduo. Usar os sonhos para avaliar a evolução clínica segundo os símbolos e temas que vão aparecendo no curso de um tratamento não pode significar reduzir  a esfera do sonho a uma interpretação: seja arquetípica ou psicanalítica.


Existencial / Miasmático

Trata-se da mudança de atitude vital.
Esta é sabidamente a mais complexa e difícil missão para qualquer homeopata. Envolve entre outros detalhamentos um estudo prospectivo do cliente, o que significa um atento e intenso acompanhamento clínico, um domínio preciso da medicina antropológica. Na prática ela significa a real cura, aquela que quando vemos cumprir-se percebemos e realizamos todo potencial que qualquer praticante da “arte” poderia aspirar.
Permite um estado de atenção para que não haja fixação em um modo reativo definido, em uma estratégia de vida montada em um roteiro falsificado, plagiado ou clonado da vida dos outros indivíduos. Cada um tem uma perspectiva singular de “buscar a saúde para quê”?
Não podemos fazer julgamentos morais, mas não podemos ignorar as tendências e inclinações morais dos que estão sob tratamento.
Quando um homeopata atua é necessário que exista uma expectativa ou uma previsibilidade diante da qual cada paciente, contextualizado em sua dinâmica peculiar, desde os dados clínicos até as sutilezas atitudinais é analizado, e isto não significa padrões apriorísticos generalizantes.
Ignorar a mudança atitudinal como integrante da composição terapêutica equivaleria não saber como registrar e processar as variações, rotações e revoluções internas que se processam durante um tratamento. Neste caso o homeopata seria soterrado por uma avalanche de informações periféricas, desarticuladas, apenas aparentemente não preconceituosas, para no final eclipsar o que é fundamental saber: O que comanda a apresentação dos sintomas individuais? O que equivaleria levantar toda  sua história com a finalidade suprema de poder perguntar: aonde este indivíduo está indo?
É necessário assumir, sem postergações, que a prática da homeopatia é humanizada no sentido mais amplo não pretende ser um claustro reformador, mas menos ainda um agente alavancador e conivente do atual estado esquizoide presente no modelo de pathos social, espelho perfeito da emanação microcósmica dos indivíduos que o compõem.
O que ainda impele o homem a resquícios de uma atitude “civilizada” é na verdade esta “ciência normativa primordial”, combatida e degrada como horrorosamente não moderna. Último obstáculo à barbárie, estado que ADORNO, um dos principais pensadores da Escola de Frankfurt, atribuía a uma tenaz impossibilidade da introjeção do superego. Mas o que é ética, senão “a ciência normativa primordial” na definição de Wundt?
A promoção e a banalização de eventos violentos, a sacralização equivocada e manipuladora dos avanços da ciência, associada a uma requisição consumista e massacrante de valores sociais promovidos por uma mídia cheia de compromiossos, opostos a qualquer ética possível, geram um simulacro labiríntico para o estabelecimento de um modo de ser saudável.
Este é certamente um obstáculo à cura, mas pode, no entanto, ser elaborado durante um processo de reinterpretação e reintegração individual através da atuação de um medicamento homeopático e de um verdadeiro acompanhamento que pese, avalie e coloque em evidência qual a direção patológica e atitudinal, obviamente muito além da mudança comportamental, que cada cliente tomará como forma e conteúdo estritamente individuais: perante uma ciência normativa de apreciações filosóficas, como consciência moral.


Patricia Jorge Alves
Terapeuta homeopata










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