Uma introdução à Filosofia, exige longa pesquisa de suas raízes nas coordenadas da evolução
humana: o tempo e o pensamento. A História da Filosofia é um continuum, que
nasce da primeira indagação do homem sobre a Natureza e depois sobre a vida e
sobre ele mesmo. Da Magia à Religião e desta à Filosofia o pensamento se
desenrola numa seqüência ininterrupta de formulações pessoais que se encadeiam
em processo dialético. Não existe a seqüência tantas vezes apresentada de
Magia-Religião-Ciência-Filosofia. O que realmente existe é um paralelismo de
ação mental que parte da primeira tomada de consciência do mundo pelo homem. Na
primeira paralela temos a seqüência Magia-Religião, que se desenvolve no plano
da afetividade. Na segunda paralela temos a seqüência
Experiência-Ciência-Filosofia, que se desenvolve no plano da razão. Entre as
duas, interligando o fluido do sentimento e da razão, temos a faixa de terra da
práxis, onde o homem opera desenvolvendo a sua capacidade de manusear as coisas
e os seres. Desse manuseio nasce o complexo do Conhecimento, delta em que vão
desaguar as correntes paralelas para a fusão que dará forma ao dualismo
Cultura-Civilização.
Kercheinsteiner, caracterizou
com clareza os dois elementos desse complexo com sua teoria da Cultura
Subjetiva e Cultura Objetiva. A primeira é o acúmulo de conhecimentos abstratos
de um aglomerado social isolado por contingências geográficas. A segunda é o
acervo de obras materiais produzido por esse aglomerado. O desenvolvimento da técnica vai superando no tempo as distâncias dos aglomerados humanos e
promovendo as aproximações que determinam a fusão das culturas isoladas num
sistema cultural único, já em vias de conclusão em nosso tempo.
Ernst Cassirer mostrou como
as culturas desaparecidas concentram-se nas obras materiais que produziram, das
quais renascem ao toque de novas culturas, como aconteceu no Renas-cimento. Os
resíduos válidos de antigas e superadas culturas são então incorporados a novos
sistemas culturais. A seqüência aparentemente interrompida se restabelece e a
acumulação cultural se agiganta, gerando a Tragédia da Cultura, pois o enorme
acervo transcende a capacidade de assimilação da mente humana e determina a
fragmentação das especializações. Arnold Toynbee assinalou a relação entre
Religião e Civilização, que se caracteriza no desenvolvimento dos ciclos
culturais. A teoria dos ciclos vem de longe e teve grande voga entre os gregos.
Cada ciclo é uma fase do desenvolvimento cultural, que se encerra para dar
início a outro. Do ciclo das Civilizações Agrárias surgiu o ciclo gigantesco
das Civilizações Orientais, massivas e teocráticas, que se fechou na Pérsia,
projetando as suas conquistas na Grécia, onde surgiram as civilizações
antípodas de Esparta e Atenas. Roma herdou e desenvolveu ao máximo espólio
espartano, em mistura com o florescimento da democracia ateniense, tipicamente
filosófica. Plotino deu seqüência ao platonismo e tentou realizar a campanha
italiana do sonho da República de Platão. Mas o ciclo da civilização
greco-romana chegava ao fim. Duas novas civilizações lutavam para definir-se
asfixiadas pelo poder romano: a Judaica, na Ásia, e a Celta, na Europa.
Foi então que surgiu a
Síntese Cristã, infiltrando-se na Europa com seus princípios renovadores,
minando o Império Romano em suas bases e encontrando ressonância na Cultura
Celta, dominante nas Gálias. O Cristianismo iniciava um novo ciclo, que iria
desenvolver-se penosa mas rapidamente, graças à dinâmica social dos seus
princípios. O esplendor da Filosofia Grega deixaria na sombra os princípios do
Celtismo. Mas Aristóteles já havia advertido que os celtas eram o único povo
filósofo do mundo. Dois milênios passariam na estruturação dos primórdios da
Civilização Cristã, impregnada de resíduos greco-romanos e judeus. Mas as
sementes do Druidismo, religião dos celtas, aguardavam no chão da Europa o
momento propício à sua germinação. Coube a Allan Kardec, um nome druida, revelar a sintonia celta-cristã e anunciar o
nascimento de um novo ciclo. Rejeitado pela cultura dominante, como fora Cristo
em se tempo, Kardec enfrentou os poderes da época e proclamou o advento da Era
Espírita. Elaborou os seus fundamentos, apoiado nas bases tríplices da Ciência,
da Filosofia e da Religião. A Filosofia Espírita definiu-se como o fulcro de um
novo ciclo da evolução humana. Não se trata de um fato ocasional ou isolado,
mas do resultado de todo o processo histórico do pensamento, ou da razão, como
queria Hegel, em seu desenrolar na temporalidade.
Na tribo ou na horda, nas
civilizações agrárias ou nas civilizações teocráticas, o indivíduo é apenas uma
peça da engrenagem social. Funciona segundo as exigências do meio, guiado pelas
forças operantes da estrutura sócio cultural. Denis de Rougemont demonstrou
como essas forças determinam a sujeição absoluta do indivíduo à estrutura.
Quando ele se reconhece dotado de características próprias, realizando-se na
transcendência horizontal da relação social, destaca-se da massa. Corre então o
risco da excomunhão. Mas se dispuser de estrutura individual suficientemente
unificada (personalidade) poderá elevar-se sobre o meio, iniciando a fase da
transcendência vertical. Nesse caso ele se projeta como uma forma de
representação coletiva. Será então o chefe, o líder, o guia, integrando o grupo
dirigente da comunidade, a sua inteligência. Mas assim mesmo estará freado
pelos condicionamentos sociais, terá de fazer concessões à moral social, aos
sistemas estabelecidos, às crenças vigentes, ao contexto geral da tradição. Se
quiser sobrepor-se a esses fatores poderá ser esmagado pela pressão da massa,
traduzida nas sanções institucionais. Foi o caso de Sócrates, como foi o caso
de Jesus.
Nas civilizações sociocêntricas
do passado, que se desenvolviam isoladas, esse processo de representação
coletiva, que na tribo se dividia entre o cacique e o pajé – o primeiro representando
o poder humano, o segundo o poder espiritual, fundiu-se na síntese do Rei Deus,
sagrado e ungido para dirigir e defender o povo. A reação natural à rigidez
dessa institucionalização perigosa se fez sentir no campo das manifestações
paranormais, através de profetas, oráculos e pitonisas. João Batista, degolado
por ordem de Herodes, é talvez o símbolo mais vigoroso da profecia social como
revolta contra a sagração artificial dos reis-deuses. Mas a representação
coletiva atingiu o seu ponto máximo na figura do Messias, o sol fecundador das
messes após as agruras do inverno, segundo a tese mitológica. Os messias eram
os salvadores e ao mesmo tempo os vingadores, os que vinham salvar os humildes
e castigar os poderosos. Investidos da sagração divina pelo próprio Deus,
centralizavam, na sua individualidade privilegiada, os poderes da Terra e do
Céu. Os seus ensinos constituíam uma revelação divina; pela boca desses arautos
falava o próprio Deus.
No milênio medieval o
processo dialético prossegue, lento e seguro. Um mundo novo está fermentando
nas querelas absurdas e uma nova revelação está sendo elaborada nas suas
entranhas psíquicas. A Filosofia Grega inflama o pensamento cristão,
despertando-o para a compreensão dos poderes do homem, do valor intrínseco do
ser humano. O dogma da encarnação humana de Deus, reflexo das teorias egípcias
e indianas do avatar búdico, produz
efeitos contraditórios. De um lado, reforça temporariamente o conceito do
homem-deus do passado; de outro lado, desperta a atenção dos pensadores para os
poderes divinos do homem. A subversão vai se confirmar nessa linha com o
desenvolvimento do Humanismo. A Ciência renascerá das cinzas de Aristóteles e o
homem se fará o revelador racional dos mistérios encobertos pela mística
religiosa.
As revelações pessoais e
locais estão definitivamente superadas. Os messias do passado tornam-se
místicos ignorantes, incapazes de revestir-se dos poderes da representação
coletiva. A Revolução Francesa proclamará a supremacia da razão sobre todo o
passado fideísta. Kardec poderá então distinguir dois tipos de revelação, ambos
divorciados da mística e do mistério: a revelação científica, feita pelos
pesquisadores dos mistérios da Natureza, e a revelação espiritual, feita
através da mediunidade e da pesquisa dos fenômenos paranormais, das condições
do mundo supra- sensível. A partir desse momento as revelações pessoais, locais
ou não, não terão nenhum sentido. A verdade não pertence a ninguém em
particular, a nenhum profeta, messias ou vidente. É um patrimônio comum, ao
alcance de todos os que se esforçam para descobri-la. A revelação é coletiva.
O indivíduo como
representação coletiva existiu e funcionou nas dimensões do passado, como
exigência natural de um mundo fechado em si mesmo, incapaz de superar os
condicionamentos sócio mesológicos de cada civilização isolada, entregue às
suas próprias forças. No mundo novo que surgiu da abertura cristã, tendo por
paradigma a especulação ateniense e por bússola a mensagem racional do
Evangelho, não há mais lugar para a autoridade individual no tocante à
problemática da verdade, que brota do real-em-si e não das interpretações
individuais, sujeitas a condicionamentos desconhecidos. Nenhum indivíduo
transformado em representação coletiva e nenhum colégio de iluminados por
sabedoria infusa pode decretar a verdade. A Filosofia dedutiva e sistemática do
passado cedia lugar à lógica indutiva, liberta das predeterminações arbitrárias
dos sistemas.
Patricia Jorge Alves
Terapeuta Homeopata