Parágrafo 210:" Organon da Arte de Curar": “Não há nenhuma doença dita somática em que não se possam descobrir modificações constantes do estado psíquico do doente”.
Assim, foi reconhecida com indicações de um mesmo remédio, a significativa freqüência de algumas seqüências de sintomas psíquicos: modalidades intelectuais e emocionais, traços de caráter, tonalidade do humor, particularidades do comportamento.
Esse aporte da experiência clínica completou e modulou as contribuições patogenésicas, levando a uma compreensão mais global e dinâmica desse “conjunto” semiológico reconhecível, específico de um remédio.
Enfim, quando os comentários descritivos substituíram a enumeração dos sintomas experimentais por verdadeiros “retratos clínicos”, vimos constituir-se a galeria de psicotipos, surpreendentes e sedutores ao mesmo tempo, contidos na matéria médica homeopática – especialmente a de Lathoud e a de Kent.
Não restam dúvidas de que se corre o risco de afastar-se demasiadamente dos sintomas patogenésicos e à força de interpretações pessoais, de trair a verdade. Contra esse risco real, a única proteção honesta é a coleta perseverante e rigorosa de observações cuidadosas, tão objetivas quanto possível, num terreno onde qualquer história é de certo modo única, onde qualquer sintoma tem valor apenas por tênues conotações.
A propósito desses retratos psicopatológicos de remédios, convém especificar dois pontos importantes:
- Semiologia física e simiologia psíquica contribuem de modo indissociável, segundo sua importância e concomitância, para determinar com exatidão o remédio cuja indicação é manifestada pela patologia do doente.
“Angústia carregada ao despertar” é indiscutivelmente uma queixa freqüente durante os estados depressivos. Em Homeopatia, isso leva a possíveis indicações terapêuticas bem diferentes, de acordo com o quadro clínico e sua tradução patogenésica:
- no caso de uma mulher pletórica, congestiva, agitada, logorréica, porém desanimada, durante uma depressão reacional (a um choque emocional ou a sua menopausa), arrancada do sono por um acesso brutal de angústia;
- ou de um adolescente longíneo, de tórax magro, pele doentia e com espinhas, triste, abúlico, com despertar difícil e tardio e que experimenta, desde esse momento, uma angústia de vazio existencial e de um futuro sem atrativo com torpor intelectual;
- ou ainda, de um velho esgotado, macilento, impaciente, irritável, que desperta subitamente com medo (de morte iminente).
Assim analisado e recolocado num contexto clínico geral, um sintoma tão comum quanto “angústia carregada ao despertar” pode assumir um valor indicativo diferente.
Evidência clara de uma inadequação ao vivido, não se trata de modo algum, de iludir, assim, por uma prescrição intempestiva, uma indicação importante que abra caminho a um diálogo
Através do interesse concedido às suas queixas diversas, do interrogatório minucioso concernente a toda a sua fisiologia, o doente “se vê” aceito em sua unidade somatopsíquica.
As descrições dos remédios, por meio das quais os homeopatas se conscientizam do instrumento de trabalho notavelmente útil e original que a Homeopatia é capaz de trazer em termos do conhecimento, da relação e da terapêutica, indicam certo registro clínico dentro do qual se diversificam todas as individualidades, os aspectos particulares à infância, à adolescência, à velhice, à parte irredutível de cada Ser.
Nessa mesma linha de funcionamento, podemos compreender a indicação do remédio e sua eficácia em diversos estados de descompensações neuróticas: em adolescentes imaturos e sentimentais, que integram mal sua sexualidade, são tímidos, pouco à vontade com seu corpo, às vezes bulímicos por compensação regressiva no plano oral; em mulheres jovens, que assumem com dificuldade uma maternidade, que desperta uma ambivalência ansiogênica\ com respeito ao filho: investimento captativo e agressividade por reativação das antigas frustrações; e às vezes tardiamente, em pessoas a caminho da senescência.
Mais além dessa patologia menor, em tal estrutura e num grau mais grave, pode também constituir-se uma fobia histérica de angústia, com presença necessária de um apoio assegurador e protetor... Companheiro contrafóbico da angústia de abandono e mesmo, de modo mais invalidante, fobias compulsivas de mácula e impureza, que acarretam ritos de purificação.
Isso não passa de um exemplo, mas seria necessário citar muitos outros, com sua riqueza clínica e o amplo terreno de suas aplicações.
É bem evidente que, ao primeiro contato, podemos ficar céticos, surpresos ou mesmo chocado diante de um processo tão singular. Mas os fatos estão aí, assim como sua verificação diária, e merecem ser levados em consideração.
A Homeopatia representa uma abordagem global da patologia do indivíduo. O conceito de psiquiatria homeopática pode parecer se não uma heresia, pelo menos uma apresentação relativamente artificial do que se passa na realidade.
A realidade atual da medicina faz com que os progressos do detalhe, quer sejam biológicos ou terapêuticos, sejam tais que impunham um trabalho gigantesco a quem desejaria apreendê-los completamente. Este bom conhecimento microscópico comporta um risco que os pacientes tem rapidamente experimentado e que os médicos sentirão um dia, que é o da atomização da pessoa do doente. Essa experiência clínica que leva brutalmente o paciente a uma época muito arcaica do seu desenvolvimento psíquico lhe é dolorosa. O médico não compreende sempre, fascinado que está pelo prazer de aprofundar seu conhecimento, que emana de um certo mito narcísico de completude. Essa ilusão é por vezes apenas um passo do tipo perverso onde, dentro do sujeito, considera-se apenas uma parte como se ela representasse o todo. O paciente encontra-se, então, situado em posição de fetiche procurando no médico apenas um orgasmo científico. Em certos casos mesmo, esse fetiche toma sua dimensão derrisória e, entre duas ondas de desejo, ele é classificado como vazio de sua substância, em algum quadro de estatísticas.
A duração da consulta e a minúcia de suas investigações pode dar ao paciente a impressão de uma grande atenção à sua pessoa como um todo. Se essa investigação é colocada apenas em nível técnico, o sujeito não está menos reconfirmado e o médico não está menos em seu isolamento terapêutico. É apenas um movimento de mudança e de investigação científica, colocando o sujeito em seu meio, enfim, diante do seu desejo.
A homeopatia que tem atualmente quase dois séculos, tem a favor dela inaudita de que seu fundador definiu de início o objeto da sua ciência como psicossomática, no sentido em que entendemos hoje.
Samuel Hahnemann situou os sinais psíquicos colhidos no discurso espontâneo do cliente ou por seu interrogatório, em um nível hierárquico essencial dos sintomas, logo depois dos sinais etiológicos. Esse interesse por sua vida interior, suscitado por tal procedimento médico, determina uma simples doença de órgãos, simples como ele acredita.
Ele está então com maior freqüência, disposto a se abrir completamente nesse domínio particular. É assim que, freqüentemente, o que se chama a “pequena psiquiatria” pode permanecer em um nível de médico de família e deve, sem dúvida, se felicitar: não há alienação social. O cliente permanece em certo equilíbrio com o meio em que vive. Para utilizar a linguagem psiquiátrica, o doente fica compensado. Quando o cliente é constrangido ou decide espontaneamente consultar um psiquiatra, aparece certa inquietude. Com muita freqüência, o doente tem consciência de que o psiquiatra vai entrar em seu mundo. Quaisquer que sejam as excelentes justificativas do profissional, isto se faz com a defesa do seu corpo e do seu espírito. O psiquiatra é tido como alienado, essencialmente em razão da demarcação que ele estabelece de modo radical em sua prática e as convenções sociais e até familiares. Ainda que não se dê conta, ele dá direito de cidadania ao inconsciente.
E o paciente sente, ainda que confusamente, que não é sempre impunemente que deixa seu inconsciente falar. A loucura não está longe. Quando se trata de um neurótico, tem medo, se é um psicótico, ele a vive plenamente e não sabe muito bem como acomodar a realidade exterior àquela que o psiquiatra quer levar a ele. Antes de mais nada, não entende o que ele fala.
O psiquiatra homeopata encontra-se, em uma situação particular, quando o comparamos a seus confrades alopatas. Mesmo quando seus clientes conhecem sua formação psicológica e sua prática psicoterápica, ele é colocado em um registro organicista. De modo tácito, existe um contrato de restauração das capacidades reacionais do cliente por meio dos remédios de ação homeopática. Com maior freqüência não é questão de tomada de consciência ou de transferência no modo psicanalítico.
Freqüentemente, os clientes já estão em psicoterapia, há longo tempo, com outro profissional, mas preferem não saber que sua cura passa, sem dúvida, por suas próprias vias anatomofisiológicas.
Pensa-se hoje, que se trata possivelmente de um modelo imunológico. Qualquer que seja o psiquiatra homeopata está ancorado na matéria e nessas condições, direcionando ao corpo.
Qualquer que seja o lugar maior que tem os sinais psíquicos na matéria médica homeopática, ele saberia não ter escolha possível do remédio sem referência ao corpo do cliente.
O tratamento psiquiátrico clássico tem má fama entre os psicoterapeutas. De fato, existe na maior parte dos pacientes tratados, uma certa anestesia, uma baixa de energia que interfere com seu desejo real de tentar se entender e de fazer uma psicoterapia. Provavelmente, a existência de um certo grau de angústia seja indispensável a este trabalho e ao desenvolvimento frutífero de uma transferência necessária. Não é o caso do tratamento homeopático que não compromete de modo algum o progresso de uma psicoterapia. Ao contrário, ele nos parece favorecê-la quaisquer que sejam suas modalidades.
A homeopatia é reacional, que exalta, quando isto ainda é possível, as capacidades de reação do indivíduo à agressão exógena ou endógena.
Concebe-se a partir daí, que uma terapêutica que se dirige ao ego do sujeito, reforçando-o, não tenha senão um efeito positivo sobre a maturação de uma personalidade.
O caráter de urgência de alguns casos implica na hospitalização, bem como, em razão do perigo do sofrimento que se apresenta o doente. É o caso das depressões graves, do tipo melancólico, das crises maníacas, das psicoses agudas. Neste caso, os progressos da psicofarmacologia têm permitido a utilização de medicamentos com ação regularmente eficaz e, freqüentemente, mais rápida que a dos remédios homeopatas. É, portanto, indispensável proceder ao tratamento clássico de modo prioritário. Nada, no entanto, impede associar o tratamento homeopático. As psicoses antigas, muito impregnadas, por neurolépticos, reagem com freqüência à homeopatia. Apesar de tudo, nos casos em que o tratamento clássico permanece ineficaz, ela retoma suas indicações. Do mesmo modo, alguns estados depressivos rebeldes aos antidepressivos de todo o tipo, respondem favoravelmente a nossos remédios. Vemos então, que se trata antes da escolha da boa indicação do que de uma contra-indicação. E nesse caso, a experiência do psiquiatra homeopata conta com a intuição do psiquiatra, qualquer que seja a decisão com o deprimido grave, sente-se a necessidade de se estabelecer uma relação fecunda com ele.
Assim, o psiquiatra homeopata torna-se um psiquiatra, mas para poder dizer verdadeiramente, homeopata, deve acrescentar à sua abordagem uma dimensão particular que se empenha na medicina do corpo. É esta que Samuel Hahnemann definiu em seu “Organon da Arte de Curar”, em seu “Tratado das Doenças Crônicas” e, em menor grau, em suas “Lições de Medicina Homeopática”.
PATRICIA JORGE ALVES
TERAPEUTA HOMEOPATA
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