“Se
o bom médico sente júbilo profundo quando pode reanimar a mente de seu paciente
resgatando-o do desalento, de modo que as aflições ou as ofensas não entorpeçam
a cura, também é seu dever sentir sua ineludível responsabilidade exercitar ao
máximo sua capacidade de influir sobre o paciente, seus familiares e seu
ambiente, a fim de redimi-lo daquelas aflições. Toda sua dedicação e capacidade
de amar ao próximo devem levá-lo a considerar que este é o objetivo primordial”.
Samuel
Hahnemann
Precisamos ter claro que desejamos ver no
processo de um tratamento um raciocínio análogo ao de desafio enxadrístico: sem
uma visão preconcebida da realidade clínica do enfermo, planejar a estratégia
com que abordaremos cada caso.
O que desejamos ver curado no paciente, quais
os instrumentos que dispomos para fazê-lo, se existem ou não obstáculos a cura.
Precisamos estabelecer qual é o modelo do
homem curado dentro das várias escolas antropológicas e adequá-los à
homeopatia, particularmente em sua abordagem miasmática.
Kent afirmava:
“observar pacientes em processo curativo
servindo-se da técnica usando vários
similares para enfim tentar encontrar e administrar o simillimum que na nossa
visão atual, sem a checagem das intencionalidades de cada melhora poderia-nos
indicar apenas a presença de um estado supressivo no qual, graças ao
tratamento, o paciente aprofundou seu estado miasmático egotrófico ou
alterlítico. A crítica recai, neste caso, no modo de investigar a melhora do paciente.”
Entre os recursos semiológicos existentes
devemos perguntar para os pacientes o que significa estar triunfante? O
“porquê” e o “para quê” dos movimentos que observamos, enfim, para onde, do
interior de suas próprias perspectivas, estes pacientes caminham?
Sem fazer estas avaliações, os casos podem
até apresentar resultados clínicos satisfatórios, mas não teremos cumprido o
papel de facilitar a liberação dos pacientes, de suas alegorias e fantasmas
obsedantes, impedindo que eles exerçam, de fato sua liberdade. Como relata um
paciente: “Eu sou livre mas não me sinto livre! Existe algo que carrego comigo
que não me deixa sentir livre”. Esta escravidão, este agrilhoamento que o
miasma engendra é o gerador de hábitos que favorecem sua fixação patológica. A
atitude permanecendo monolítica anula qualquer possibilidade de transformação.
Trata-se da única forma de avaliar o movimento dos miasmas, além de ajudar-nos
no entendimento detalhado da trama de cada paciente, permitindo que asseguremos
uma cura mais abrangente, a cura antropológica.
Quanto aos instrumentos, é necessário obter o
máximo de dados do paciente e confrontá-los com o material patogenético. Mas
isso pode ainda estar longe do suficiente.
É necessário, assegurar que todos os
sintomas, as modificações, o aparecimento de sintomas novos, a volta de
sintomas antigos, a anotação detalhada das disposições e das indisposições,
estejam registradas.
O caso de assegurar uma semiologia correta de
forma que sempre possamos adquirir o conhecimento do paciente em todos os
setores: clínico, afetivo, intelectual, espiritual, idiossincrático e
existencial \ miasmático. A cada um desses itens teremos que direcionar nosso
interrogatório.
No aspecto clínico devemos investigar sobre a
evolução dos sintomas, se o paciente vem melhorando, encontra-se estável, ou
observa um declínio da melhora inicialmente referida.
Parece claro que a clínica demanda que
atinjamos a esfera teológica da busca individual. Mas como fazê-lo? Com que
instrumentos semiológicos? Uma recomendação, no entanto, merece ser sublinhada:
evitar a qualquer custo uma semiologia “extorciva” para obter estas respostas.
Em primeiro lugar considerar que a cura, em
uma perspectiva ampliada, só pode estar correta, sob a dimensão homeopática, se
levarmos em consideração o parágrafo 9 as ponderações de Hahnemann nos seus
“Escritos Menores”: particularmente nos textos “Medicina da Experiência”,
“Esculápio na Balança” e “O Amigo da Saúde”, assim como uma análise cuidadosa
do material contido em suas cartas.
A partir destes momentos temos a chance de
entender o que significa “cura” para dentro do Corpus hahnemaniano.
O Parágrafo 9 do “Organon da Arte de Curar” é
uma síntese para guiar o homeopata na busca de seus objetivos antropológicos,
especialmente se considerarmos nele a inspiração hahnemaniana da liberação. Mas
a liberação dos “instrumentos vivos e sãos” está teleologicamente condicionada:
“para que ele alcance os mais altos fins da existência”. Hahnemann então deixa
muito clara a sua rejeição a uma solução autotélica(com finalidade em si mesma)
de vida, sejam quais forem os referenciais antropológicos usados para
justificá-la.
“O propósito da saúde de seu corpo é que a
alma encontre seus instrumentos sãos e saudáveis para poder dirigi-los às
ciências e para adquirir as virtudes morais e racionais para atingir esta
meta.”
A palavra curar vem do latim curare e segundo
os dicionários etimológicos passou a ter o atual significado de cura médica,
posteriormente: “Do sentido de Cuidar (de uma doente) passou ao termo (sarar).
Sarar do latim sanare, ficar são”.
Para a visão vitalista de medicina, “curar”
pode significar, melhorar, cuidar,atenuar sofrimentos, sarar, restituir. Ainda
no século passado, o pai da histologia Bichat, afirma que só poderíamos chamar
de cura perfeita um indivíduo que tivesse morte natural ao térmico de sua
existência e já advertia “que não era fácil de ver casos de morte natural”.
Revisando as definições de saúde encontramos
Canguilhem quem interpretou a saúde como “silêncio dos sintomas” enquanto Beguin preferiu
identificá-la como um estado de “inocência orgânica”, mas estes parâmetros
também tornaram-se insuficientes para permitir a detecção do que é que o
indivíduo busca como sentido para sua liberdade. A alusão do parágrafo 9,
“liberar os instrumentos”, representa uma etapa preliminar para usá-los
apropriadamente, mas como normalizar a cura se o que buscamos é exatamente
singularizar a patologia? Repetiríamos com Kant que “cada homem tem seu modo
particular de estar são”.
A liberação mental deste estado mitologizante
permite desenvolver ao sujeito sua forma original de pensar, o indivíduo não
será mais um mero cúmplice de seus próprios vícios.
Hahnemann veio reformar o conceito da
patologia, que estabelecia uma identidade necessária e exclusiva entre lesão e
enfermidade. Para ele, cuja herança foi decodificada por Kent, a enfermidade
não poderia se deixar reduzir ao contexto lesional, ou da entidade
anatomoclínica, mas deveria ser ampliada para corresponder a totalidade dos sintomas
(objetivos e subjetivos) que o enfermo apresentasse. Para ser um médico
antropológico não é necessário abandonar a patologia e a fisiologia, mas
trazê-las ao campo correto, ao terreno de uma terapia para o conjunto humano.
Isso trouxe uma dimensão definitivamente nova
para a arte médica, que deixava finalmente de se ocupar exclusivamente das
“paixões corporais” e da patologia lesional para dedicar-se a entender e
debruçar-se, mesmo com as enormes dificuldades, sobre a complexidade do
organismo, incluindo e valorizando as abundantes manifestações da subjetividade
presentes nos sujeitos enfermos.
O desiderato de cura rápida suave e duradoura
não é e nunca será um estado simples de ser alcançado, mas deve manter-se como
um alvo contínuo. Portanto, do ponto de vista da técnica homeopática original é
o que deve sempre ser perseguido em todas as circunstâncias.
O todo não é a soma das partes, mas as partes
multicêntricas em correlação e intercâmbio permanente é que caracterizam a
complexidade do todo vivo. Isto está em consonância com a verdadeira concepção
vitalista de toda uma linhagem de médicos. A enfermidade caracteriza-se pelo
desarranjo da “atmosfera individual” e sua posterior reconstrução através das
“estruturas falsificadas”, se quisermos retomar a terminologia que Henry Allen
utilizou.
Esta falsificação ajusta-se ao plano de
enfermidade mais profunda que Hahnemann chamou de miasma.
A clínica denota que é somente após este
plano de falsificação da autenticidade original ter entrado em cena que poderemos
enxergar sua repercussão citológica- tecidual, então organizadas no paciente,
repercussões que segundo as descobertas da patologia experimental apresentam-se
de uma forma muito mais veloz do que o senso comum imagina.
Área Afetiva / Anímico
Melhora das funções dos instrumentos
de relação. Investiga-se o ânimo, o estado de espírito, o humor. Deve-se estar
atento que esta possibilidade de reagir psiquicamente não seja a expressão das
já descritas “falsas estruturas” ou das melhoras enganosas sustentadas pela
atuação miasmática.
Os sonhos são parâmetros importantes e são,
como todos os itens desta divisão, permeados pela idiossincrasias individuais.
No entanto, há que se vê-los com muita cautela e num contexto individualizado.
Devemos retomar aqui a atitude investigativa e não interpretativa. É necessário
contextualizá-los na vida do indivíduo. Usar os sonhos para avaliar a evolução
clínica segundo os símbolos e temas que vão aparecendo no curso de um
tratamento não pode significar reduzir a
esfera do sonho a uma interpretação: seja arquetípica ou psicanalítica.
Existencial / Miasmático
Trata-se da mudança de atitude vital.
Esta é sabidamente a mais complexa e difícil
missão para qualquer homeopata. Envolve entre outros detalhamentos um estudo
prospectivo do cliente, o que significa um atento e intenso acompanhamento
clínico, um domínio preciso da medicina antropológica. Na prática ela significa
a real cura, aquela que quando vemos cumprir-se percebemos e realizamos todo
potencial que qualquer praticante da “arte” poderia aspirar.
Permite um estado de atenção para que não
haja fixação em um modo reativo definido, em uma estratégia de vida montada em
um roteiro falsificado, plagiado ou clonado da vida dos outros indivíduos. Cada
um tem uma perspectiva singular de “buscar a saúde para quê”?
Não podemos fazer julgamentos morais, mas não
podemos ignorar as tendências e inclinações morais dos que estão sob
tratamento.
Quando um homeopata atua é necessário que
exista uma expectativa ou uma previsibilidade diante da qual cada paciente,
contextualizado em sua dinâmica peculiar, desde os dados clínicos até as
sutilezas atitudinais é analizado, e isto não significa padrões apriorísticos
generalizantes.
Ignorar a mudança atitudinal como integrante
da composição terapêutica equivaleria não saber como registrar e processar as
variações, rotações e revoluções internas que se processam durante um
tratamento. Neste caso o homeopata seria soterrado por uma avalanche de
informações periféricas, desarticuladas, apenas aparentemente não
preconceituosas, para no final eclipsar o que é fundamental saber: O que
comanda a apresentação dos sintomas individuais? O que equivaleria levantar
toda sua história com a finalidade
suprema de poder perguntar: aonde este indivíduo está indo?
É necessário assumir, sem postergações, que a
prática da homeopatia é humanizada no sentido mais amplo não pretende ser um
claustro reformador, mas menos ainda um agente alavancador e conivente do atual
estado esquizoide presente no modelo de pathos social, espelho perfeito da
emanação microcósmica dos indivíduos que o compõem.
O que ainda impele o homem a resquícios de
uma atitude “civilizada” é na verdade esta “ciência normativa primordial”,
combatida e degrada como horrorosamente não moderna. Último obstáculo à
barbárie, estado que ADORNO, um dos principais pensadores da Escola de
Frankfurt, atribuía a uma tenaz impossibilidade da introjeção do superego. Mas
o que é ética, senão “a ciência normativa primordial” na definição de Wundt?
A promoção e a banalização de eventos
violentos, a sacralização equivocada e manipuladora dos avanços da ciência,
associada a uma requisição consumista e massacrante de valores sociais
promovidos por uma mídia cheia de compromiossos, opostos a qualquer ética
possível, geram um simulacro labiríntico para o estabelecimento de um modo de
ser saudável.
Este é certamente um obstáculo à cura, mas
pode, no entanto, ser elaborado durante um processo de reinterpretação e
reintegração individual através da atuação de um medicamento homeopático e de
um verdadeiro acompanhamento que pese, avalie e coloque em evidência qual a
direção patológica e atitudinal, obviamente muito além da mudança
comportamental, que cada cliente tomará como forma e conteúdo estritamente
individuais: perante uma ciência normativa de apreciações filosóficas, como
consciência moral.
Patricia
Jorge Alves
Terapeuta
homeopata